A infância não é útil, mas é vital
- Jessica Nevel
- 17 de set.
- 2 min de leitura

Na clínica psicanalítica, somos convidados a escutar não apenas o que é dito, mas o que foi silenciado. A adultização de crianças, frequentemente associada à exposição precoce à sexualidade, revela-se também em formas mais sutis e devastadoras: a supressão da infância como espaço legítimo de desenvolvimento psíquico. Trata-se de uma violência simbólica que se instala quando a criança é convocada a ocupar funções que não lhe pertencem — seja como suporte emocional de pais fragilizados ou adoecidos, seja como cuidadora de irmãos, ou como mediadora de conflitos familiares.
Ferenczi, ao falar da “confusão de línguas entre adultos e crianças”, já apontava para o risco de uma criança ser interpretada e tratada como um adulto em miniatura, perdendo o direito de experimentar o mundo interno com liberdade e segurança. Essa confusão não se limita ao campo sexual; ela se estende à responsabilização precoce, à exigência de maturidade emocional e à negação do tempo lúdico, do devaneio, da fantasia tão importantes na infância.
O recorte de gênero torna essa dinâmica ainda mais cruel. Meninas são frequentemente investidas com o papel de cuidadoras, pequenas mães, responsáveis por afetos e rotinas que deveriam estar sob o cuidado dos adultos. Essa sobrecarga rouba a espontaneidade da infância e impede o contato com seu território emocional — aquele espaço fértil onde se constroem os alicerces da subjetividade. Sem tempo para brincar, sonhar ou simplesmente existir sem função, essas crianças crescem com um vazio que não é ausência, mas excesso: excesso de demandas, de expectativas e de silêncios impostos.
A adultização, nesse sentido, é uma forma de abandono. Não o abandono físico, mas o abandono da experiência de ser criança. E quando a infância é sequestrada, o sujeito cresce sem ter exercitado valências importantes, como a espontaneidade, a criatividade e o contato com as suas emoções, tendo que aprender, só depois, a lidar com o turbilhão emocional que se instala.
A infância que deveria correr como a correnteza do leito principal de um rio, começa a se desviar pelos afluentes, deixando-se aparecer apenas nas brechas. É comum existir uma espécie de represamento emocional, que pode se manifestar das mais diversas maneiras.
Em tempos em que produtividade e utilidade são tão valorizados, parece que a infância vai perdendo seus contornos, algo que precisa ser repensado numa esfera coletiva e individual. Com este panorama, parece-me revolucionário, atualmente, entrar em contato e abrir espaço para que a criança de cada um se manifeste.
Que espaço damos para escutar a criança que pulsa em nós?



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