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somos todos múltiplos



É comum escutarmos pessoas que se autointitulam como ‘homens de bem’. Ao nos determos em uma investigação mais detalhada sobre esse grupo de pessoas que bradam o lema ‘Deus, pátria e família’ encontramos ações que seguem exatamente na direção contrária do que pregam.

Trata-se do senhor que preza pelos valores familiares ao mesmo tempo que sustenta relações escondidas. É o idólatra anticorrupção que comete ilícitos ao erário público. É a senhora que se diz caridosa, mas com histórico de maltrato aos seus empregados. Os exemplos poderiam seguir se multiplicando.

Cabe perguntar, por que alguns que defendem com fervor os valores morais, não se percebem como pessoas que não os executam? Por que suas falas são dissonantes de sua ação?

Gostaria de recorrer a ideia do narcisismo, proposto por Freud. Esse conceito é diferente do que entendemos no senso comum ou daqueles manuais que descrevem patologias relacionadas a esse tema. O narcisismo para Freud se trata de uma movimentação da energia psíquica (que ele chamou de libido) que ora se dirige ao eu, ora para objetos externos. Essa condição de movimentação é fundamental para nossa constituição psíquica, pois disso deriva a forma como a pessoa se relaciona consigo e com os outros.

Como o ser humano nasce biologicamente imaturo, necessita do outro para fazer a vida perseverar. Dessa experiência e dependendo de como isso se dá, há uma vivência de desamparo que pode resultar em linhas diversas, uma delas é submissão ao desejo do outro. O sujeito passa a ser aquilo que acha que o outro quer dele, em troca disso, a promessa de proteção à ameaça do desamparo.

De outro lado, temos um modelo civilizatório que propõe regras morais para a regulação da sociedade. É uma dobradinha - renunciamos à nossa força e potência em troca de uma suposta proteção imaginária. Essa barganha psíquica traz efeitos colaterais. Tudo aquilo que aponta para algo diferente de mim, torna-se ameaçador. Se a alteridade é ameaçadora, precisamos combatê-la. É nesse momento que o narcisismo começa a ganhar contornos de adoecimento e quando potencializado, pode tornar-se o germe do fascismo.

O nosso ‘cidadão de bem’ se abraça com os valores morais, buscando uma proteção do seu eu e recalca tudo aquilo que não é aceito pela consciência, colocando o ‘mal’ como algo externo e o ‘bem’ como algo interno.

Caetano com sua poesia já cantava ‘é que narciso acha feio o que não é espelho’. O fato é que continuar achando que é feio o que não é espelho nos afasta da possibilidade de acolher a alteridade e de experienciar uma nova vivência no coletivo. O bem não é separado do mal. Parece que o uso desse modo de pensar é uma forma de controle ideológico.

O exercício de acolhimento da diferença é fundamental para a criação de um modo de vida que privilegia o coletivo. Já passou da hora de compreendermos que não há sujeitos de bem ou do mal, afinal, somos todos múltiplos.

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